Eventos analisam criminologia no cenário internacional

Quem acompanha o noticiário policial desconhece que por trás de todo o processo de investigação e punição de um crime – e até mesmo da própria prevenção a ele – está uma ciência interdisciplinar que tem ganhado bastante atenção nas últimas décadas dentro da universidade: a criminologia.

Nos dias 25 e 26 de abril, dois eventos no campus Ribeirão Preto da USP debateram e trouxeram atualizações sobre esse tema, inclusive com palestrantes internacionais. A conferência “Políticas criminais e de segurança” e o II Seminário Internacional de Criminologia foram organizados pelo Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto da USP, pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP) da USP e pela Organização Comunitária Santo Antônio Maria de Claret.

Entre os palestrantes, estava o diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto Cândido da Agra, um dos grandes estudiosos internacionais da criminologia. Em uma videoconferência, ele abordou a história e as características da criminologia como sistema de pensamento e destacou sua importância para compreender o crime e a violência como fenômenos atuais.

“Não há uma só causa para o crime, há várias. Há fatores que se conjugam, fatores biopsicossociais. Não há um delinquente nato e não há um tipo constitucional de delinquente: qualquer pessoa normal pode ser um delinquente”, diz ele.

Para Agra, a criminologia não é uma moda, já que desde os anos 80 vem atingindo um patamar chamado pelo filósofo e historiador Michel Foucault de epistemologização ou cientificização. Há novos ramos dessa ciência em desenvolvimento, como a criminologia experimental, que dá continuidade aos estudos de delinquência juvenil e prega que é necessário agir mais cedo em relação às trajetórias de delinquentes, e os setores ligados ao crime cibernético, que desperta grande preocupação.

“Os criminosos são doutores, uns em economia, outros em cibernética. Estamos longe de acompanhar totalmente as inovações que nascem no crime através das novas tecnologias, da informática. Há 30, 40 anos, ainda estávamos no limbo da revolução cientifica e tecnológica. Não acreditem que os delinquentes são ignorantes, que não tem mais formação em informática que nós”, afirma Agra.

Avaliação da segurança em Portugal e Cabo Verde

Além de abordar questões relacionadas à violência e ao fenômeno do crime no Brasil, os dois eventos também apresentaram um panorama do que acontece em outros países de língua portuguesa, como Portugal e Cabo Verde.

Docente da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Carla Cardoso realiza estudos para avaliar políticas públicas relacionadas à segurança implantadas na cidade do Porto, em Portugal. Uma pesquisa orientada por ela mapeou questões sobre o sentimento de insegurança na população local, utilizando entrevistas e reconhecimento de fotografias, além de uma técnica conhecida como eye tracking, que identifica o caminho do olhar de uma pessoa ao se deparar com uma imagem.

Segundo ela, a percepção de que a segurança e o sentimento de insegurança eram fenômenos que precisavam ser estudados deu-se nos anos 60, nos Estados Unidos. Trinta anos depois, começou-se a aplicar esses estudos também em Portugal, pois embora o país não apresentasse grandes taxas de criminalidade, a população relatava sentimento de insegurança e medo do crime.

“Esses estudos podem dar pistas para quem está por trás das tomadas de decisão. Por exemplo, perceber melhor como se pode construir o espaço urbano. Essa é uma dimensão importante para o dia a dia das pessoas. Quando o medo interfere na qualidade de vida de uma pessoa, ela deixa de fazer coisas importantes, como uma caminhada recomendada pelo médico que não é feita porque ela tem medo de sair à rua”, afirma.

Já em Cabo Verde, o fenômeno criminal não é homogêneo. O docente do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais de Cabo Verde João Francisco de Brito dos Santos abordou as características da violência em seu país.

“Lá existem basicamente os mesmos problemas de outros países em termos de fatores que favorecem o crime. Mas há estabilidade política. Entretanto, um estudo comparativo feito por pesquisadores da Universidade de Coimbra mostrou que a criminalidade na Guiné Bissau é muito inferior à de Cabo Verde – e lá existe uma instabilidade terrível desde a década de 80. Já foi até considerado um narcoestado pela comunidade internacional. E como é possível? A resposta é óbvia: em Cabo Verde há muito mais coisas para roubar à disposição do ladrão”, conta ele.

Innocence Projects

A ideia de crime está associada à ideia de uma penalidade para quem o comete. Mas nem sempre quem realmente cometeu um determinado crime é o condenado. Segundo o docente da Universidade Estadual de Maringá e da Unicesumar Gustavo Noronha de Ávila, isso acontece devido ao principal tipo de prova usado no processo: a memória da testemunha.

Ávila explica que a formação da memória obedece a um processo envolvendo etapas de estímulo, codificação, armazenamento e recuperação. Por isso, o fator tempo é fundamental para se produzir uma prova de qualidade baseada no depoimento da testemunha. Caso contrário, o risco de se condenar alguém em virtude de uma falsa memória aumenta.

“Falsas memórias são distorções, lembranças que contêm dados que não correspondem ao que aconteceu no passado. Ela não revela uma intenção da pessoa em alterar realidade de fatos. É gerada espontaneamente, por sugestão de terceiros e acaba sendo representação da realidade como pessoa a enxerga”, diz ele.

O próprio processo de ouvir a testemunha, segundo ele, está repleto de equívocos. Um dos métodos usado, chamado show up, envolve apresentar apenas uma foto ou um suspeito, o que pode acabar confundindo as memórias. Além disso, nas entrevistas feitas com a testemunha são realizadas, na grande maioria, perguntas fechadas, que limitam as respostas e também podem gerar conclusões erradas.

Para tentar evitar que inocentes acabem pagando por crimes que não cometeram, foi criado nos Estados Unidos em 1992 o Innocence Projects. Trata-se de um instituto sem fins lucrativos que se dedica a tentar absolver pessoas injustamente presas realizando um exame mais criterioso das provas – e pleiteando indenizações para os condenados quando sua inocência fica provada. Atualmente, ele se tornou uma rede e está presente em diversos países, entre eles o Brasil.

“O projeto chegou ao Brasil em dezembro de 2016, em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Por enquanto, estamos fazendo uma seleção por amostragem a partir de casos recebidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Também estamos traduzindo para o português o formulário aplicado pelo Innocence Projects aos apenados”, conta Ávila.

Segundo ele, o projeto pretende ainda estimular discussões sobre causas sistêmicas da condenação de inocentes, inclusive com produção de dados sobre erros judiciais, além de realizar cursos de capacitação para agentes públicos sobre os melhores procedimentos para ouvir as testemunhas e fomentar mudanças legislativas e estruturais para prevenir condenações injustas.

Legalização das drogas

A política de combate às drogas em vigor atualmente no País também contribui para o inchaço das prisões. O docente da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP Victor Gabriel Rodriguez mostrou em sua palestra que a legalização das drogas poderia ser uma saída para melhorar o cenário carcerário brasileiro.

Ele citou estatísticas que apontam o tráfico como razão de 28% das detenções. No caso das mulheres, esse número sobe para 65%. A implantação da Lei de Drogas, em 2006, trouxe um aumento de 25% no encarceramento, embora a proposta fosse de penas mais brandas para usuários. Rodriguez lembrou ainda que a extensa fronteira com países produtores de drogas torna a vigilância praticamente impossível.

“Vivemos uma guerra às drogas. Mas a finalidade de uma guerra é a paz. Não faz sentido declarar uma guerra sem saber qual termo de paz se deseja celebrar. Vemos, de um lado, cenas no Rio de Janeiro em que policiais matam traficantes rendidos, mas veja: os matam sem revolta da sociedade. Tirando nós, que vivemos em bolhas sociais de direitos humanos, a sociedade vibra quando morre um traficante. Nossa guerra está vencida, não há termo final”, afirma ele.

Para Rodriguez, a proposta de descriminalização não será uma falta de regulamentação. Ele citou como exemplo substâncias psicotrópicas legais que são vendidas de forma controlada nas farmácias e causam até mais dependência que outras drogas ilegais. “Se a pessoa obtém a droga pelo Estado, não existe o agente que quer viciá-la, como o traficante faz. Também teríamos uma série de vantagens de assistência ao usuário, de auto-responsabilização e, principalmente, de estrangulamento do dinheiro do crime. Ninguém vai conseguir fazer com que o crime deixe de existir enquanto ele movimentar um trilhão de dólares por ano”.