Modelo de trabalho baseado na indústria acentua invisibilidades no setor de serviços

Pesquisas que envolvem aspectos relacionados ao trabalho geralmente se baseiam em modelos ligados à indústria. Porém, o setor de serviços apresenta características muito diferentes do setor industrial, o que acaba gerando métodos de trabalho que reproduzem uma série de invisibilidades. O docente da Universidade do Quebec em Montreal (UQAM) Angelo Soares, explicou de que forma essas invisibilidades estão presentes no cotidiano de prestadores de serviço em evento realizado pelo Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP nesta quinta (10), na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP.

Baseando-se na obra do professor de filosofia francês Emmanuel Renault, Soares abordou três tipos de invisibilidades no mundo do trabalho contemporâneo: a negação, quando um dominante exprime sua superioridade não reconhecendo as competências do trabalhador para executar determinada tarefa; o eufemismo, ou seja, uma minimização das competências do profissional; e a espetacularização ofuscante, quando joga-se um foco sobre determinado aspecto de maneira intensa, desprezando-se outras partes importantes, como a própria organização do trabalho e os métodos de gestão.

O docente pesquisou diversos aspectos do trabalho no setor de serviços tanto no Canadá, onde reside atualmente, quanto no Brasil. De acordo com dados do IBGE de 2016, 69% da população empregada no País está no setor de serviços. “No Canadá, mais especificamente no Quebec, esse número chega a 79%. Apesar disso, o trabalho na indústria ainda é utilizado como modelo para representar o trabalho como um todo”, explica.

Segundo ele, as relações sociais interferem diretamente nas atividades profissionais e produzem diferentes tipos de trabalho. Mas Soares critica a separação e a hierarquização baseadas em relações de raça, etnia, gênero e idade, entre outras. “Por exemplo, existem trabalhos para homens e trabalhos para mulheres e esses trabalhos não são valorizados da mesma maneira, ou seja, existe uma hierarquização. Mesmo hoje, apesar de todo o movimento feminista, nos países ocidentais, as mulheres ganham 70% do salário dos homens. E não é porque existe uma diferença de salário. É porque homens e mulheres não estão concentrados nos mesmos tipos de empregos. E como esses tipos de empregos masculinos são mais valorizados, eles ganham mais que as mulheres. Porque as competências para esses trabalhos desempenhados pelas mulheres são geralmente invisíveis”, afirma.

Em sua pesquisa, Soares entrevistou operadores de caixa em supermercados do Brasil e do Canadá. Ele levou em consideração tanto os aspectos culturais quanto os sociais. “No Brasil, por exemplo, os operadores de caixa trabalham sentados. Já no Canadá, eles trabalham em pé, porque ficar sentado pode passar uma imagem de que são preguiçosos”, conta.

A partir dos depoimentos, ele identificou cinco dimensões que nem sempre são mensuradas em termos de valor atribuído ao trabalho: a dimensão física, relacionada ao esforço físico que o profissional realiza; dimensão cognitiva, ligada ao conhecimento necessário para executar as tarefas; dimensão corporal, relativa à incidência de normas sobre o corpo do trabalhador, tornando-o parte necessária para o cumprimento de determinadas tarefas; dimensão emocional, que determina a gestão das emoções; e dimensão relacional, ligada às relações estabelecidas entre o trabalhador e as pessoas envolvidas em suas atividades.

“Há casos, porém, em que a dimensão física exige questões emocionais e cognitivas. Um exemplo é de uma enfermeira que entrevistei e relatou que às vezes recebe pacientes que não tomam banho há dias e exalam mau cheiro. Ela não pode demonstrar nojo enquanto está atendendo. Então procura pensar no bem-estar que aquele atendimento vai proporcionar à pessoa para tirar o foco de seus pensamentos do mau cheiro”, diz Soares.

Aceitar e compreender essas dimensões, segundo Soares, é romper com a ideia de que o trabalho é algo racional, que pode ser controlado. “Na tecnologia, por exemplo, existem muito mais aspectos humanos entre o apertar uma tecla e o resultado final. Entretanto, hoje há softwares que agem como se o trabalho humano fosse sempre o mesmo”.

O docente destaca que toda profissão é passível de erros, mas eles têm implicações maiores em determinadas áreas, como a saúde. “Muitas vezes, quando o erro acontece, o trabalho se torna visível. Quando alguém erra, há uma espetacularização ofuscante, ou seja, coloca-se o foco somente sobre o erro e não se questiona a organização do trabalho ou os métodos de gestão utilizados”.


Para Soares, violências psicológicas – como o próprio assédio moral – estão mais presentes atualmente e não são resultado de pessoas ruins, mas sim de um contexto organizacional que tolera e catalisa essas violências. “É necessário lutar por uma organização do trabalho e práticas de gestão mais democráticas, centradas em participação, respeito, justiça e ética. As práticas usadas atualmente muitas vezes acabam acentuando as invisibilidades”.